domingo, 14 de novembro de 2010

Cracolândia

“Existe um ser que mora dentro de mim como se fosse a casa dele, e é. Trata-se de um cavalo preto e lustroso que apesar de inteiramente selvagem - pois nunca morou antes em ninguém nem jamais lhe puseram rédeas nem sela - apesar de inteiramente selvagem tem por isso mesmo uma doçura primeira de quem não tem medo: come às vezes na minha mão. Seu focinho é úmido e fresco. Eu beijo o seu focinho. Quando eu morrer, o cavalo preto ficará sem casa e vai sofrer muito. A menos que ele escolha outra casa e que esta outra casa não tenha medo daquilo que é ao mesmo tempo selvagem e suave. Aviso que ele não tem nome: basta chamá-lo e se acerta com seu nome. Ou não se acerta, mas, uma vez chamado com doçura e autoridade, ele vai. Se ele fareja e sente um corpo-casa é livre, ele trota sem ruídos e vai. Aviso também que não se deve temer seu relinchar: A gente se engana e pensa que é a gente mesma que está relinchando de prazer ou de cólera, a gente se assusta com o excesso de doçura do que é isto pela primeira vez."

Clarice- uma aprendizagem ou o livro dos prazeres

sábado, 23 de outubro de 2010

o castelinho ou novo endereço


para alguns acomodação é ausência de movimento. hoje de manhã, pensando nisso eu entendi seu contrário: escutei atentamente o barulho que faz esse movimento de se acomodar. Da janela do meu apartamento que guarda ainda um cheiro cínico de tinta fresca eu olhava a construção ao lado em sua mais espalhafatosa atuação: remover areia de um canto para o outro. Com garras colossais a máquina cavoucava a areia milenarmente sedimentada naquele solo e a removia para um montinho ao lado. Na mais legítima e desesperada manifestação de protesto eu vi areia escoar pelas frestas. Suicidas, saltavam do alto do guincho e imediatamente preenchiam o buraco vazio feito pela máquina. E refeito pela máquina e refeito infinitamente pela máquina na sua debilidade resignada de máquina. A minha paixão pela areia, essa matéria singularmente democrática, vem de não sei qual parquinho de Alfenas quando ainda cedo eu entendi que ela dialogava tão intimamente com os outros estados da natureza. Fica no ar se ali quiser ficar, vira barro quando transa com água e faz terra firme para a gente passar. E hoje eu a vi caindo de qualquer jeito do seu jeito informe e quanta luta, gente, quanta luta para formar aquele montinho sabe-se lá por quanto tempo e com qual finalidade. E daí vem máquina , o vento , uma criança e seu baldinho e bem rapidamente a areia é outra coisa. Naquela época nem me passava pela cabeça do que realmente se tratava esta generosidade. Eu amava muito sua disposição para corresponder sem dificuldades a minha forminha. Amava também a firmeza delicada com a qual envolvia meus pezinhos e a resistência lúdica que oferecia quando era hora de desenterrar-me no passo a passo. No entanto foi este barulho de hoje, de areia resistindo à forma, que me colocou em contato com alguma coisa difícil da minha realidade. Não sei se a tinta já secou e talvez eu insista em senti-la fresca demais. Não sei se eu, em conluio com o ar, me dispersei. Sei que é cínico supor que alguma forma vai conter a inquietação histórica da minha matéria. Assim como a areia eu só aceito o castelinho enquanto for de brincadeira.